Recife conhece o desabafo de ilustre hipocondríaco ao sair de consultório médico onde, pela enésima vez, lhe foi repetido que de nada padecia: - Quero saber, quando morrer, o que alegarão como causa mortis. Nada?
Pois de nada, e sem hipocondria, se foi um primo meu. Não podia ser diferente. Durante toda a vida fugiu ao convencional. Foi coroinha sem pronunciar uma única palavra em latim, então idioma das cerimônias católicas. Soldado, quando da Segunda Guerra, deixou de seguir às batalhas, pela nobre razão, como contava, de melhor que ninguém lustrar as botas do Tenente Schneider, essenciais à defesa da pátria.
Em suas infâncias, que foram muitas, e adolescências também plurais, não conviveu com as ladeiras-abaixo, o resfolegar dos náufragos à tona, as coroas de louros. Cresceu imune ao estresse.
Por quatorze anos, em três mandatos, exerceu as funções de prefeito da sua - e minha - São Bento do Una, sem ser tocado pela vaidade ou o mandonismo. Envaidecia-se, porém, de duas obras. Uma, a criação do ginásio municipal, hoje estadual, para cuja oficialização utilizou os métodos menos ortodoxos, como tomar emprestado a sala de visitas de um amigo para compor o mobiliário exigido pelo órgão homologador. Devolveu as peças no dia seguinte ao da inspeção. O mesmo fez com laboratório cedido por colégio de padres de cidade vizinha. Necessário, ainda, um número mínimo de alunos, matriculou-se no curso de admissão e com ele fez matricular vereadores, funcionários e amigos. Também adversários, que inimigos não tinha. Suficiente que não houvessem cursado o ginasial. Outra, a inauguração do sistema de água encanada. Disse-me quando planejava a obra: - Todo o dinheiro da municipalidade vai para a água. Se não colocar a distribuição para funcionar até o fim do mandato vou ser escrachado pelo povo, mas se conseguir chegar lá tô realizado. Inaugurou. Dizem que no momento do descerramento da placa, ao lado do governador, não resistiu, afrouxou a gravata, tirou paletó e sapatos e mergulhou no reservatório. Sempre negou o gesto. Eu acredito.
Na juventude trabalhou num lugarejo, onde, a par das tarefas de gerente de entreposto leiteiro, participou com tal intensidade da vida do povoado que foi homenageado com versos d’uma toada de vaqueiros: “É padre, é mestre, é doutor/ é juiz, é promotor/ é o moço mais distinto/ da Capoeira do Pinto/ também sabe advogar/ faz casamento e celebra/ as forças dos velhos quebra/ e ensina moça a dançar.”
Curso primário incompleto, embora orador eloqüente, comunicava-se com o povo na língua que vinha da boca do povo, na língua errada do povo, língua certa do povo, porque ele é que fala gostoso o português do Brasil, como disse Bandeira. Mesmo assim, nem sempre era entendido. Usava, então, de outros meios. Quando trovoada cavou enorme vala em rua pobre, procurado por uma velhinha que se dizia impossibilitada de entrar em casa, resolveu à sua maneira. Pouco adiantaria dizer sobre grandes obras, licitações, concorrências. Explicou, então, que sendo a chuva enviada por Deus, melhor ir devagar. Numa semana uma britazinha, noutra um pouco mais. Quando Deus notasse o conserto já estaria pronto. Sem afrontá-Lo.
Crenças acolhia todas. Ao casar, acatou orientação para controle do número de filhos. Bastante, nos quatro primeiros colocar nomes cujas iniciais formassem a palavra Deus. Daí, Danilo, Eliane, Uleide e Sara. Pouco depois, a mulher com quem viveu 53 anos, e continuava a chamar Meu Cravo, engravidou. Gêmeos. Resignou-se: - Agora, vou formar a frase Deus Proteja Esta Casa. Não chegou a tanto. Nove, no total. Todos ex-alunos do ginásio.
Assisti seu sepultamento e, ao ver o tamanho do cortejo, lamentos e orações por aquele que já não detinha qualquer poder, concluí que somente de nada poderia morrer. E, como nada não mata, ele, que sempre teve ares de eternidade, continua vivo.
Pois de nada, e sem hipocondria, se foi um primo meu. Não podia ser diferente. Durante toda a vida fugiu ao convencional. Foi coroinha sem pronunciar uma única palavra em latim, então idioma das cerimônias católicas. Soldado, quando da Segunda Guerra, deixou de seguir às batalhas, pela nobre razão, como contava, de melhor que ninguém lustrar as botas do Tenente Schneider, essenciais à defesa da pátria.
Em suas infâncias, que foram muitas, e adolescências também plurais, não conviveu com as ladeiras-abaixo, o resfolegar dos náufragos à tona, as coroas de louros. Cresceu imune ao estresse.
Por quatorze anos, em três mandatos, exerceu as funções de prefeito da sua - e minha - São Bento do Una, sem ser tocado pela vaidade ou o mandonismo. Envaidecia-se, porém, de duas obras. Uma, a criação do ginásio municipal, hoje estadual, para cuja oficialização utilizou os métodos menos ortodoxos, como tomar emprestado a sala de visitas de um amigo para compor o mobiliário exigido pelo órgão homologador. Devolveu as peças no dia seguinte ao da inspeção. O mesmo fez com laboratório cedido por colégio de padres de cidade vizinha. Necessário, ainda, um número mínimo de alunos, matriculou-se no curso de admissão e com ele fez matricular vereadores, funcionários e amigos. Também adversários, que inimigos não tinha. Suficiente que não houvessem cursado o ginasial. Outra, a inauguração do sistema de água encanada. Disse-me quando planejava a obra: - Todo o dinheiro da municipalidade vai para a água. Se não colocar a distribuição para funcionar até o fim do mandato vou ser escrachado pelo povo, mas se conseguir chegar lá tô realizado. Inaugurou. Dizem que no momento do descerramento da placa, ao lado do governador, não resistiu, afrouxou a gravata, tirou paletó e sapatos e mergulhou no reservatório. Sempre negou o gesto. Eu acredito.
Na juventude trabalhou num lugarejo, onde, a par das tarefas de gerente de entreposto leiteiro, participou com tal intensidade da vida do povoado que foi homenageado com versos d’uma toada de vaqueiros: “É padre, é mestre, é doutor/ é juiz, é promotor/ é o moço mais distinto/ da Capoeira do Pinto/ também sabe advogar/ faz casamento e celebra/ as forças dos velhos quebra/ e ensina moça a dançar.”
Curso primário incompleto, embora orador eloqüente, comunicava-se com o povo na língua que vinha da boca do povo, na língua errada do povo, língua certa do povo, porque ele é que fala gostoso o português do Brasil, como disse Bandeira. Mesmo assim, nem sempre era entendido. Usava, então, de outros meios. Quando trovoada cavou enorme vala em rua pobre, procurado por uma velhinha que se dizia impossibilitada de entrar em casa, resolveu à sua maneira. Pouco adiantaria dizer sobre grandes obras, licitações, concorrências. Explicou, então, que sendo a chuva enviada por Deus, melhor ir devagar. Numa semana uma britazinha, noutra um pouco mais. Quando Deus notasse o conserto já estaria pronto. Sem afrontá-Lo.
Crenças acolhia todas. Ao casar, acatou orientação para controle do número de filhos. Bastante, nos quatro primeiros colocar nomes cujas iniciais formassem a palavra Deus. Daí, Danilo, Eliane, Uleide e Sara. Pouco depois, a mulher com quem viveu 53 anos, e continuava a chamar Meu Cravo, engravidou. Gêmeos. Resignou-se: - Agora, vou formar a frase Deus Proteja Esta Casa. Não chegou a tanto. Nove, no total. Todos ex-alunos do ginásio.
Assisti seu sepultamento e, ao ver o tamanho do cortejo, lamentos e orações por aquele que já não detinha qualquer poder, concluí que somente de nada poderia morrer. E, como nada não mata, ele, que sempre teve ares de eternidade, continua vivo.
NOSSA MOTINHA VOCÊ JÁ TEM O DOM DE PRENDER O LEITOR A SEUS TEXTOS EM, ADORO...
ResponderExcluirZé Mota, quem em São Bento do Una pode contar a história do sítio BARÚÚNAS? Minha mãe, Maria de Medeiros, nasceu lá (filha de Antônio Medeiros Valença e de Leonor de Holanda Valença.
ResponderExcluirMeu bisavô, José de Holanda Cavalvanti, foi assassinado no mesmo sítio.
Os pais de Antônio (Toinho) Medeiros Valença: Francisco Claudino de Almeida Valença e Maria Aurora Cordeiro Fonseca de Medeiros. De Maria Aurora pouco sei.
Abraços,
Leonor Medeiros
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