terça-feira, 23 de maio de 2017

VISÃO POLÍTICA DE HANS KELSEN: POLÍTICA E DEMOCRACIA

Além de teórico do Direito, Kelsen foi também um teórico da política, estudando a fundo os regimes políticos, sobretudo a democracia. 
Sabe-se que o ano de 1942 foi importante para Kelsen: depois de ter proferido palestras na Universidade de Harvard em 1941, consegue, enfim, na Universidade da Califórnia, em Berkeley, fixar-se como docente, iniciando seu período estadunidense. 

O departamento com o qual se manteve vinculado foi o de Ciência Política. Nele, dedicou-se a inúmeros cursos, dentre os quais muitos de direito internacional, teoria do Estado e política. Entretanto, seus estudos sobre esses temas não têm, propriamente, início naquela década.


 De fato, grande parte dos escritos políticos data da década de 20. Alguns deles, inclusive, resultam de posicionamentos e reflexões defendidas quando da elaboração da Constituição austríaca.

Partindo dos conceitos de direito, ciência do direito, norma fundamental, estabelecidos na teoria pura do direito e na teoria geral das normas, e do conceito de justiça kelseniano, a Democracia e a Teoria Geral do Estado. 
Nesse sentido, estabelece-se uma relação de pertinência entre o regime político e a norma fundamental, pela qual esta é pensada nos termos do regime político adotado na
constituição da ordem jurídica, ou seja: devo obedecer a uma ordem jurídica elaborada na forma estabelecida pelo regime político(autocracia e democracia).

Assim, o objeto da norma fundamental de uma Democracia seria uma ordem jurídica democrática, de sorte que a norma fundamental de uma Constituição democrática seria: só devo obedecer a uma constituição elaborada dialeticamente mediante um compromisso entre a maioria e a minoria, e cujo resultado seria uma norma que atenda a ambos os interesses. 

Essa visão integrada da teoria Kelseniana atesta mais uma vez a genialidade de Kelsen que, sem travar conhecimento com a chamada virada da linguagem, compôs uma teoria jurídico-política que se aproxima em muitos pontos das mais modernas teorias resultantes dessa nova concepção filosófica. 



 REGIMES POLÍTICOS

Regime político para Kelsen (2003f, p. 405-409) pode ser definido como a forma de organização dos governos, mais precisamente, forma de organização do poder de governar. 

A teoria política distingue sistemas básicos de governo:
monarquia, aristocracia e democracia. Nesses três sistemas, a organização do poder difere pelo critério da distribuição do poder: 
  1. Quando esse poder é concentrado em um só indivíduo, temos a monarquia;
  2. Quando está concentrado em uns poucos indivíduos, temos a autocracia;
  3.  E, quando está nas mãos da maioria do povo, temos uma democracia.


Kelsen (2003f, p. 405-406), porém, entendendo o Estado como a personificação de uma ordem jurídica de determinada comunidade e a Constituição 76 como a base fundamental do Estado, elabora uma classificação dos regimes de governo do ponto de vista jurídico:

O critério pelo qual uma constituição monárquica se distingue de uma republicana, e uma constituição aristocrática de uma democrática, é o modo como a Constituição regulamenta a criação de sua ordem jurídica.

Essencialmente, uma Constituição (no sentido material) regulamenta apenas a criação de normas jurídicas gerais determinando os órgãos e o procedimento da legislação.
Analisando os regimes políticos, autocracia e democracia, Kelsen (2003f, p.405-406) afirma:

Porque a distinção entre monarquia, aristocracia e democracia diz respeito essencialmente à organização da legislação. Um Estado é considerado uma democracia ou uma aristocracia se sua legislação tiver natureza democrática ou aristocrática, embora sua administração ou o seu Judiciário possam ter um caráter deferente.

Podemos dizer, então, que para Kelsen o regime político de uma nação consiste na forma ou em um processo pelo qual a ordem social é organizada e dirigida. Essa organização da ordem social reflete o modelo processual a ser adotado na criação e aplicação do Direito.

 O CONCEITO DE DEMOCRACIA E LIBERDADE POLÍTICA

Basicamente, a idéia de democracia está intrinsecamente ligada à idéia de liberdade política. Segundo Kelsen (2003f, p. 406), politicamente livre é quem está sujeito a uma ordem jurídica de cuja criação participa. Um indivíduo é livre se o que ele deve fazer segundo a ordem social coincide com o que ele quer fazer. Democracia significa que a vontade representada na ordem jurídica do Estado é idêntica à vontade dos sujeitos.
Assim, na democracia, o povo participa da criação da ordem jurídica.

Antes de conceituar democracia, Kelsen se preocupa em traçar a evolução do conceito de liberdade. Kelsen (2000, p. 407) entende que, inicialmente, a idéia de liberdade tinha sentido negativo, representado pela ausência de compromisso, no sentido de que era livre aquele que vivia fora do estado e da sociedade; o conceito de liberdade era o de liberdade natural. Com o aumento da complexidade do corpo social, com o fortalecimento da idéia de sociedade, de ordem social, essa liberdade natural transforma-se em liberdade política, ou seja, é a liberdade que só é exercida
sob a ordem social.

Contudo, Kelsen (2003f, p. 408), citando Rousseau, levanta a questão: “Como é possível estar sujeito a uma ordem social e permanecer livre?” A resposta de Kelsen é que só é possível ser livre sujeitando-se a uma ordem social por meio da democracia porque ela consagra a autodeterminação do indivíduo quando assegura
sua participação na criação da ordem social. “Liberdade política é liberdade, e liberdade é autonomia”. (KELSEN, 2003f, p. 408).

Assim, temos, pois, a norma fundamental como um elo entre o regime político como um fator organizador da ordem social e o processo de criação e aplicação do sistema jurídico de determinada comunidade. 

A democracia é obra da cultura humana, não podendo, por isso, ser
“elaborada, ou fabricada”, no sentido técnico-científico desses termos, mas apenas ser vivida. Pode ser estudada por critérios científicos, mas não pode ser valorada como boa ou má, não comportando valores absolutos. Como ensina Kelsen (2000,
p. 254), o sentido do valor da democracia é de adequabilidade à realização da liberdade, o que só pode ser atestado pela história.
Não se pode dizer que a história referendou a teoria política de Kelsen, mas a importância e a atualidade das questões levantadas em sua teoria política pode ser atestada nas palavras de Domenico Losurdo (2004, p. 219) que, analisando o desenvolvimento do sufrágio universal e da democracia através dos tempos afirma:
Talvez seja Kelsen o mais significativo teórico deste desenvolvimento da democracia (da democracia de partidos organizados baseada no sufrágio universal e na representação proporcional) verificado em alguns importantes paises do
Ocidente”.

Ainda segundo Losurdo (2004, p. 220), Kelsen mostra em sua teoria política que a democracia baseada no sufrágio universal só é possível por meio do sistema de representação proporcional.
Da análise do sufrágio universal, nos dias de hoje, efetuada por Losurdo em sua obra citada, podemos perceber que a democracia kelseniana ainda não foi realizada, daí a atualidade de sua teoria política, porque a participação efetiva do povo nas democracias mais importantes de hoje, sobretudo a democracia americana, é bastante mitigada pela presença de valores absolutos que servem de base para que o poder seja concentrado nas mãos do governante, ou de certo grupo ou classe que governa. 
Kelsen mostra que tanto do ponto de vista do Direito como da política não há valores absolutos que possam embasar o regime político e a ordem jurídica. Isso pode ser verificado em nossa sociedade atual, na qual a mudança é a palavra de ordem. 116
A grandiosidade das teorias política e jurídica de Kelsen, contudo, não se revela apenas na metodologia apurada, no rigorismo intelectual, na coerência e na complexidade, mas no fato de que ambas nos oferecem, nelas mesmas, muitos dos meios e conceitos para sua superação. 

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